sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Primavera - Parte 1/2


Este conto faz parte da antologia Legado de Eros:

As tímidas flores roxas foram as primeiras a despontar naquele ano. Floresciam solitárias naquela margem do Mondego, uma ilha de vida no meio da terra vazia, arautos da primavera. Inúmeras covas artificiais espalhavam-se em volta. Milhares de fragmentos de metal misturavam-se no húmus e na rocha pulverizada. As flores eram o único ser vivo que aparentava não se aperceber da desolação que as rodeava.

Miguel ouviu a agitação propagar-se pelas trincheiras. Não era preciso muito para se gerar uma comoção por ali, tudo o que quebrasse a monotonia de estar aninhado nas valas era fonte de excitação para aqueles jovens. Um arrepio de antecipação percorreu-lhe a espinha.
O barulho foi-se aproximando. O tenente dobrou a esquina. Passou-lhe um envelope para a mão e estendeu um embrulho a Daniel, seguindo o seu caminho.
Sentaram-se os dois no banco improvisado. Apesar de estar a arder por dentro, Miguel abriu o sobrescrito com cuidado. As primeiras linhas levaram-no de volta a uma primavera que pertencia a outra existência.
Ela apareceu de vestido azul claro com rebordos folhados e inocência no olhar. Cabelos curtos e escuros. O olhar focou-se nas mãos delicadas.
― Quem é ela? ― perguntou ao colega do lado, depois de lhe dar um safanão.
― É a Ana, não conheces?
― Não, e tu vais-me apresentar.
O amigo devolveu-lhe um olhar de aborrecimento, acabando por concordar. Ao aproximar-se dela, pareceu-lhe que o fixava de volta.
― Olá, Ana, este é o Miguel ― disse-lhe, estendendo a mão.
Os olhares teimavam em não se desviar, precisando de uma enorme força de vontade para se inclinar e cumprimentá-la.
O som de um papel a ser rasgado trouxe-o de volta ao presente. A seu lado, Daniel sentado nas tábuas e com as botas na lama, desembrulhava um pedaço de pão e uma chouriça. Retirou a faca da bainha e cortou uma fatia generosa de ambos, dando-lhe uma enorme dentada.
― Quem te escreveu? ― perguntou-lhe o companheiro.
Miguel levantou os olhos da carta, contrariado pela interrupção. Retirou uma fotografia impermeabilizada do bolso do uniforme e mostrou-a ao amigo.
― É da minha noiba ― respondeu, mostrando-lhe uma foto de uma jovem de cabelo curto, deixando a sua expressão abrir-se num sorriso de saudade.


Ana rodou a chave, abrindo a porta de entrada. O primeiro olhar para o chão destruiu-lhe a esperança de encontrar um envelope deixado pelo carteiro. Largou na mesa o saco de legumes que lhe havia sido dado no ponto de distribuição. Os braços e a cabeça doíam-lhe do trabalho repetitivo e barulhento da fábrica têxtil.
Empilhou algumas achas no borralho por cima de uma camada de bicas e uma pinha. Chegou-lhe um fósforo deixando que o fogo apeirasse. Atirou a grelha para cima e depois a panela. A custo, despejou duas tigeladas de água para o interior. Retirou os legumes do saco, tentando não pensar muito no assunto. Dedicou-se à tarefa de lavar e cortar os ingredientes para uma sopa.
A mãe entrou em casa quando ela dividia as batatas ao meio. Os cabelos prateados multiplicavam-se naquela figura demasiado magra. Desde que o pai fora chamado que fora obrigada a trabalhar por dois. A mulher cumprimentou a filha com um abraço, ajudando-a na preparação do jantar.
Com uma pitada de sal, Ana completou a receita. Ao endireitar-se, calhou olhar para a varanda, recordando-se da primeira vez que ele a viera visitar a casa. Fora apenas um instante, enquanto os pais conservadores não os observavam. Uma desculpa nada inocente levara-os àquela varanda e um beijo rápido selou, pela primeira vez, o seu amor. Se fechasse os olhos ainda conseguia sentir os lábios dele, saboreá-los, cheirá-lo. Quase como se estivesse à sua frente.
― Oh filhinha, não fiques triste. Ele há-de voltar! ― prometeu a mãe, pousando a mão no ombro.
Ana encarou a progenitora e acenou com um sorriso tímido. A noite caía lentamente, revelando um céu estrelado e sem nuvens, o estado do tempo mais odiado pelos portuenses. As condições perfeitas para um bombardeamento aéreo.


Durante o lusco-fusco, Miguel ouviu os motores na outra margem. O som chegou a todos os que habitavam na trincheira. O olhar de Daniel transparecia medo.
Com o estômago meio cheio de minúsculos cubos de toucinho e legumes envolvidos em água aquecida, a que chamavam sopa, sabia que não poderia esperar uma noite tranquila. Pelo menos não era dos piores dias, em que fome lhe toldava os sentidos. Com a arma apertada firme na mão e futuro incerto, relembrou outra refeição.
Os seus pais haviam convidado os dela para jantar. A sala tinha a mesa grande coberta por uma toalha branca bordada, que só era usada em ocasiões especiais. Os pratos e talheres eram novos, tinham estado em caixas por mais de dez anos.
Miguel andou para trás e para a frente, depois às voltas. A mãe dissera-lhe para ficar calmo e não se preocupar, mas estar assim parado não o ajudava em nada. Quisera entrar na cozinha para se assegurar que tudo estava a correr pelo melhor. A mãe fechara-lhe a porta na cara, enviando-o de volta para a sala.
Ouviu a campainha. O coração quase falhou uma batida. Alisou o casaco e passou a mão pelo cabelo, apressando-se na direcção da porta. Com as mãos a tremer puxou o trinco, revelando o casal acompanhado pela filha.
― Senhor José ― cumprimentou, apertando-lhe a mão. ― Senhora Maria ― murmurou, pegando-lhe a palma com suavidade enquanto se inclinava. ― E a menina Ana ― concluiu, corando.
Levou-os até à mesa e, um momento depois, os pais trouxeram a comida. Bifes de porco. Valiam pelo menos cinco contos de reis, o ordenado de uma semana. A água nasceu-lhe na boca assim que os cheirou. Não comia nada assim há meses. As batatas e a carne foram distribuídos, iniciando-se a refeição, regada por um bom vinho.
Quando terminaram, o pai chamou a atenção e apontou na sua direcção. Sentiu todos os olhos postos em si e o suor a escorrer-lhe pela testa. Parecia que tinha um tijolo entalado na garganta.
― Senhor José ― murmurou, por fim. ― Gostaria de pedir a mão da sua filha.
Sentado na trincheira, sentiu um aperto no peito. Não iria deixar passar o dia seguinte sem lhe escrever. As cartas eram o seu único conforto.
O barulho dos motores aumentou de intensidade. Os soldados olharam para o céu, distinguindo as silhuetas de um esquadrão de bombardeiros. Mais uma carpete de morte seguia na direcção da capital. Sentiu um aperto no coração. Não saiba como iria viver se acontecesse algo à alegria dos seus dias.


Podem ler a segunda parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/11/a-primavera-parte-22.html

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